quinta-feira, 25 de maio de 2017

A Tareca






Era assim que enroladinha, ternamente quieta, todas as manhãs ela esperava que a porta da cozinha se abrisse e lhe fosse servido o pequeno almoço. As suas sopinhas de pão em leite morno deliciavam-na desde que aparecera no Jardim e fora acarinhada por todos. Numa tigela comprada especialmente para a senhora gata o pão amolecia no leite que ela lambia até desaparecer a última gota. Mas, antes de iniciar a sua refeição matinal, a única que vinha tomar a nossa casa, a Tareca, nome com que carinhosamente  a batizámos, esfregava-se languidamente nas minhas pernas como só as gatas sabem fazer.

Foi assim que este ritual se praticou, durante algum tempo, com prazer para nós e satisfação para ela, suponho. Chegava de manhã, comia, era acariciada, brincava pela relva atrás dos gafanhotos ou dos pardalitos mais jovens. Desaparecia e só regressava no outro dia. Foi fotografada pelas crianças que lhe dedicaram a sua amizade.

Mas a Tareca era gata de rua e, tal como tinha aparecido assim desapareceu sem um adeus, sem um miado. Ficou um vazio nas nossas manhãs.

Deixou saudades.


foto e texto de Benó

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Joana

 Joana.
Uma cara alegre num corpo franzino. Duas mãos esguias a rematar os braços magros sempre em movimento. As pernas musculadas habituadas às corridas com os rapazes do bairro nos grandes desafios que lhe eram propostos pelos mais velhos sempre prontos a provocações. Os cabelos louros, lisos, presos na altura da nuca com um laço de fita azul, escorriam até meio das costas. Já tinha pedido à mãe para cortar o cabelo pois era a primeira coisa a ser agarrada e puxada com a força dum adolescente zangado, durante as disputas com os outros elementos dos grupos.
A Joana era a única rapariga entre quatro irmãos. Para sobreviver naquela selva masculina teve de por de parte as bonecas, as casinhas, as panelinhas e aprender a jogar ao berlinde, correr pelas ruas com o arco e até, a dizer palavrões. Teve de se tornar Maria-Rapaz e ser superior aos rapazes, em todas as brincadeiras.
Passaram muitos anos. Muitas primaveras e muitos outonos. Muitas praias e muitos areais. Outras disputas foram travadas. Umas vencidas outras perdidas.
Joana era agora uma presente no grupo que calmamente gozava o bom sol da beira-mar, num dia de temperatura amena, no principio desta primavera quente com dias de verão.
Os cabelos perderam a cor dourada, mas, sim, eram lisos e curtos, embora as “guerras” em que se metia atualmente fossem diferentes das vividas na sua adolescência, num bairro da periferia lisboeta. Agora conversava calmamente, agitando as mãos esguias e cuidadas, e sabia sorrir no meio dos assuntos que se discutiam naquela mesa da esplanada. Assuntos ligeiros, pois, em férias esquecem-se os problemas que atormentam a maioria dos cidadãos.
Joana que conheci menina rebelde tornara-se mulher que sabia camuflar a rebeldia.

foto e texto de Benó



quinta-feira, 11 de maio de 2017

A árvore




A praia está ali tão perto.
A árvore despiu-se para se bronzear. Nua, agita suavemente a sua densa cabeleira amarela para chamar a atenção de quem passa ao mesmo tempo que das suas pequenas flores se desprende um odor adocicado.
Gostaria de sair dali, molhar os pés nas águas frescas do mar que vê e ouve, mas está presa à terra onde nasceu e só lhe resta cumprir, da melhor maneira possível, a função que a Mãe Natureza lhe destinou de dar colorido ao caminho para o areal.
É a acácia da beira mar, de braços fortes que suportam os ventos agrestes que a abanam mas não a arrancam do lugar onde sempre viveu.

foto e texto de Benó