segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Outro café.








Senta-se, como habitualmente, à mesa colocada junto à grande janela da cafetaria do largo, onde, todas as manhãs, toma o café  em chávena escaldada, servido pelo empregado que já conhece os seus hábitos.

 A pequena garrafa com água fresca descansa junto ao copo ainda vazio. Traz sempre um livro como companhia mas, antes de se meter na complexa dança das letras, gosta de olhar em redor analisando os diversos tipos de pessoas que ocupam as outas mesas. Na generalidade são jovens que desconhece, são tagarelas e alegres como se depreende pelas risadas que ecoam alto cortando o ar perfumado pelo odor adocicado dos bolos vindo da cozinha, fábrica de pasteis de nata e outras doçuras.

Bebe o café dum trago, sem açúcar nem adoçante.  Ali, sentada à mesa do café, rodeada de jovens, ouvindo as suas conversas e as suas gargalhadas esquece as  artroses e tendinites que começam a atormentá-la,  esquece os desaires que afligem a humanidade, a fome, a guerra,  as mortes no Mediterrâneo tão azul e tão perto, os atentados em nome duma religião praticados por gente que só sabe matar sejam crianças ou não e recorda com um sorriso os seus sonhos e ambições pessoais, a sua juventude vivida ali mesmo, na calma terra onde nasceu, cresceu e se fez mulher, num tempo em que tudo se passava vagarosamente e as calamidades externas não chegavam ao conhecimento deste povo que vivia isolado do resto da europa.

Agora, numa total abertura a todo o mundo, em que comodamente instalados em casa ou à mesa dum café se pode ver em direto as guerras dos outros no preciso momento em que estão a acontecer, começa a crer que o desejo num amanhã mais equitativo em que todos se possam entender e a ambição desmedida não suplante a boa vontade duma igualdade mais justa não passe dum sonho impossível.

-Outro café, faz favor! – Bem forte!


quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Lápis de cor


Abriu, vagarosamente, a bolsinha de tecido azul mar que a avó Mariana, mãe do pai, lhe fizera e despejou o conteúdo na mão. Contou uma por uma as moedas pretas e brancas que conseguira amealhar no  ano escolar.

Há muito que desejava comprar uma caixa de lápis de cor, daquelas com muitas cores. Para isso era preciso dinheiro. Talvez se ele arranjasse um pequeno trabalho, conseguiria algumas moedas, como por exemplo, fazer uns recados às vizinhas que sempre reclamavam de não terem tempo para ir às compras.

Os pais tinham ordenados pequenos pelo que não tinham disponibilidade financeira para lhe darem mesada. Assim, tinha de arranjar algum dinheiro com o seu próprio esforço. Lembrou-se que poderia ajudar a  D.Maria, visto  ela sofrer  de reumatismo e ter alguma dificuldade em andar, até mesmo, para se deslocar à mercearia do sr. Manuel que ficava no fundo da rua.

Logo que chegava da escola, ia directamente buscar o pão à padaria do sr. Manuel, conforme a mãe lhe recomendara. Depois, passava pela casa da D.Maria que ficava perto da sua, para saber das suas necessidades e trazia tudo duma vez. Ainda lhe sobrava tempo para brincar e fazer os trabalhos da escola.

No fim da semana, mais propriamente, ao domingo, em troca dos serviços prestados, pelos recados feitos, recebia uma moeda, que não era sempre do mesmo valor pois, também, dependia de como estava o porta-moedas da vizinha, mais ou menos abastado.

O Domingo fora, também, o dia escolhido por ele e pelo avô para irem ao café do largo onde se sentavam como dois amigos, velhos conhecidos, nas cadeiras de alumínio que ladeavam a mesa quadrada, de fórmica verde, junto à vidraça que dava para a rua, sempre movimentada naquela hora da tarde e lanchavam. O avô bebia um “garoto” e comia um queque e ele bebia uma Fanta e comia um “caracol” enquanto conversavam sobre as aventuras e desventuras escolares, assunto que agradava ao avô, pois ria-se sempre muito e exclamava – Boa, neto! Tu já sabes muita coisa!

No fim do lanche, os dois caminhavam até casa, onde o avô jantava com ele, com os pais e os gémeos seus irmãos mais novos, e, no fim, antes de voltar para ir dormir, dava-lhe um beijo de boas noites e uma moedinha branca que ele agradecia e ia guardar junto às outras.

Tornou a contar as suas economias e ficou radiante com o total. Já tinha a quantia suficiente para ir à loja da D.Gracinda comprar a caixa de lápis de cor que há tanto tempo desejava. O primeiro desenho colorido com aqueles lápis seria para o avô, o seu melhor amigo. Até já sabia o que iria fazer: um barco como o do avô quando andou na pesca e que ele gostava de admirar na fotografia emoldurada que a mãe, orgulhosamente, exibia em cima da cómoda.

A criança sorriu ao pensar na alegria que o avô iria sentir quando lhe entregasse o seu primeiro desenho pintado com os lápis de cor adquiridos com o dinheiro amealhado na bolsinha azul.




segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Negatividade




Andava cansada, a dormir pouco. Durante a noite, tendo por companhia o silêncio dos lençóis, levantava-se duas e três vezes para andar um pouco na semiobscuridade do corredor e, mais descontraída, ajudar o sono a aninhar-se. Em vão. Noites de insónia que lhe provocavam mal-estar e uma completa irritação diária, a ponto de descarregar nas crianças, pobres inocentes, o frenesim que sentia. Nenhum dos livros da mesa de cabeceira a ajudava naquela sua luta com o sono.
Tinha de escrever.

Ali, à mesa do café, talvez a tarefa que estava a ser difícil, se tornasse fácil.As palavras começavam a ter necessidade de sair da cabeça onde se encontravam desordenadas, aos empurrões, apertando-se umas nas outras.
Pegou num lápis. Às vezes esquecia o teclado e gostava de sentir o cheiro do papel e de riscar o que não lhe parecia correto à primeira, em vez de carregar na tecla do “Eliminar” para, num instante, a palavra errada desaparecer. Era mais rápido, talvez, mas, agora, precisava de tempo para ordenar o que sentia desordenado.
Pediu um segundo café, curto, em chávena escaldada.
Puxou do cigarro. À mão, a droga necessária para se acalmar um pouco e tentar arrumar as ideias. Nada se coordenava. Nenhuma frase fazia sentido. Os pensamentos não tinham consistência e as têmporas começaram a latejar. Cerrou as pálpebras e lentamente letras, palavras, acabaram por ir aparecendo formando pensamentos.
Estava mais calma e, cigarro atrás de cigarro, o lápis foi deslizando pelo branco do papel na transmissão das ideias que se atropelavam no seu pensar.
Sentiu-se liberta da pressão que tinha dentro de si.
A mão voltava a ser comandada pelo pensamento.

texto e foto de Benó

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Setembro



Quando o meu corpo arde no calor do Setembro  devagar, calmamente, mergulho nas águas frias que me causam arrepios e deixo-me envolver nesse abraço molhado para logo emergir  refrescada, todo o corpo perolado de água que sabe a sal; pernas bambas, braços pendentes.

Acalmada, assim, dos últimos calores estivais, sinto que o meu corpo pede descanso e molemente me espreguiço e alongo pelas douradas areias.

Tão indolente me encontro que, por momentos, a vida para, as horas são eternas, a maré escoa, o sol aquece neste fim de tarde, neste fim de Setembro.

Esqueço quem sou ou onde estou.

Não  sinto nem pressinto a vida que passa.

Flutuo no éter nestas horas do entardecer.

Acontecendo em Setembro.

foto e texto de Benó