terça-feira, 29 de abril de 2014

Zangas

                                                                                                              foto da net


Folhas mortas, folhas secas que o vento arrancou. Soltas, esvoaçam pelo ar ou pousam no chão onde serão pisadas, desfeitas em pó que o vento espalhará.

Há palavras que quando libertadas podem ser usadas em arremessos violentos nas fúrias ventosas dos desencontros da vida ou podem vogar no ar ao sabor arrítmico das brisas quando reina a calmaria no espaço da vivência.

Folhas secas, palavras rudes, ambas são material de combustão fácil, capazes de provocar chama se caírem em sítios pouco cuidados onde as atenções à sua intrínseca manutenção foram esquecidas no vaivém sempre igual das rotinas costumeiras. Aí tombadas, folhas ou palavras, rapidamente se criam condições para que fortes labaredas irrompam num braseiro destruidor.

Palavras duras como pedras, afiadas como setas, doridas e sofredoras atiradas como dardos certeiros ao alvo escolhido, ouvidas ao acaso, entre bicas e pastéis de nata, no burburinho dum café, pouso de gente de longe, onde as folhas não entraram mas os verbos soaram no presente, esquecido que estava o passado sem futuro desejado pelos intervenientes da peleja.
 
texto de Benó


terça-feira, 22 de abril de 2014

Cinzas

 
 
 
Hoje são cinzas cinzentas, frias, mortas.
 
 
 
Ontem,  foram brasas escaldantes, rubras, cheias de calor, de vida, exímias executantes de danças feitas de abraços e desabraços, sempre num constante sobe e desce, tais  bailarinas em complexas coreografias  a rodopiar nos braços dos seus pares.

Como se fossem gente, elas aqueceram, iluminaram, foram fogo, foram chama, labaredas dançantes no palco da vida.

Apagou-se a lareira, morreram as chamas, arrefeceram as cinzas mas ainda resta um pouco de calor  na sala arrefecida.



fotos da net
texto de Benó

domingo, 6 de abril de 2014

Sinopse duma vida


“É a vida. São os anos” Diz a Inácia para justificar as dores nas cruzes que a atormentam, as artroses nos pequenos dedos das mãos, a dificuldade que sente em calçar os sapatos.
A vida não foi fácil para a Inácia nascida em pleno rebentar da II Guerra Mundial, criada na pequena vila onde todos se ajudavam com amizade e com preocupação pelos problemas que sendo individuais se tornavam colectivos.

Os pés andavam nus no verão, livres sobre as ervas, correndo sobre caminhos que serviam homens e animais numa sã vivência e dependência. No inverno, quando a geada queimava os pastos, a Inácia calçava umas botas que já tinham sido beneficiadas com meias-solas e solas inteiras para um qualquer primo ou irmão.

As mãos agora calejadas já foram jovens e cedo começaram a trabalhar para ajudar outras mãos já cansadas de tanto lavar, engomar, cozinhar para todos que eram muitos mas também souberam tecer sonhos de menina, bordar quimeras e desejos de mulher, ofereceram amor em troca de nada.

Hoje, tantos invernos já passados, as costas da Inácia ressentem-se desses frios, dos pesos dos feixes de ervas que transportaram quando ainda os seus ossos eram tenros e em formação.

“É a vida” que foi dura, madrasta para uma MULHER que viveu, sofreu em silêncio, frios, secas, infortúnios porque “há sempre alguém em piores condições”.

“São os anos” duma vida longa, honesta, trabalhosa, difícil para quem nasceu MULHER, pobre e “nunca passou da cepa torta”, passados entre risos e lágrimas, entre os que nascem e são a esperança de melhores dias, os que ficam agarrados ao leme do seu destino, entre as saudades dos que abalam para outras terras com promessas de regresso, vivendo as lembranças dos que vão e já não voltam.

São as dores da fatalidade de quem se acomoda, da MULHER que ama, chora, entrega-se por inteiro e se esquece de si própria.

Eis a sinopse da vida duma MULHER.

texto e foto de Benó

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