sábado, 18 de julho de 2015

Coração inerte

                                                                                       foto de Vanda Rita Oliveira


Na vazante, quando o mar se encolhe e se retrai oferecendo-nos um vasto areal, ela ali está, a imponente caldeira, abrigo de lapas e mexilhões, burgaus e ouriços. 

Quando eu era mocinha loura e traquina, sempre à procura do desconhecido, corria pela praia na esperança de encontrar estrelas tremeluzentes que tivessem caído do alto, daquelas alturas tão infinitas que, no meu pensar infantofantasioso nem o maior dos gigantes lá chegaria. Porem, quando o mar recuava, nas grandes marés , a caldeira de ferro enferrujado, toda esburacada, enorme, era um atrativo para a minha curiosidade. Afoita, metia-me dentro daquele tamanho imenso, na procura de lapas e ouriços que comia crus, ali mesmo, e acabava por esquecer a procura das estrelas, das conchas nacaradas, dos pequenos búzios com que fazia pulseiras para os meus braços e pernas de menina.

Não sei a que senhor pertenceu mas sei que, desde sempre, me habituei a vê-la coberta de areia ou completamente a nu consoante o prazer do mar que a lambia, esse mar que é manso e de águas transparentes mas que, facilmente, pode agigantar-se, ficar branco de raiva e espumar. Ali está, há muitos, muitos anos, despojo duma guerra que não foi da minha vida mas que a deixou na praia da minha infância, de grãos dourados e finos por onde os meus pés descalços corriam e se enterravam, com a alegria própria da criança feliz que sempre fui.

Hoje, continua a ser um atrativo misterioso para a criançada que poderá não gostar do mesmo que eu mas, certamente, aprecia descobrir pequenos búzios e outros seres marinhos agarrados aquele ilhéu de ferro, coração inerte, esburacado, dum navio que cruzou mares, venceu tempestades e agora está coberto de acaramuje e para nada serve.

Quando o verão acontece e o areal é penteado e despenteado pelo vento norte, a caldeira emerge e as recordações afogam-me.

 

                                                                                                                                                                                          

 

 

 

5 comentários:

Catarina disse...

Tantas recordacoes de quando eramos pequenos procurando bichinhos nas rochas e na areia... que felicidade para uma crianca imaginar as historias mais fantasmagoricas por vezes... : )

Miss Smile disse...

É curioso como um simples objeto pode trazer de volta tantas recordações e lembranças e reavivar uma infância longínqua.
Um texto muito bonito que despertou em mim recordações queridas :)

Ana Freire disse...

Sempre bom recordar pormenores da nossa infância... que nos voltam a recordar tempos felizes e despreocupados... em que pequenas coisas... ganhavam uma proporção imensa, e eram cenário de inúmeras aventuras...
Um belíssimo texto, Beno! Que adorei!...
Beijos! Uma boa semana!
Ana

Graça Pires disse...

Estou a vê-la, amiga Benó, "mocinha loura e traquina" a correr pela praia. A imaginar tanta coisa... Um texto muito belo...
Um beijo.

Maré Viva disse...

Como sempre, um texto belíssimo, feito de lembranças, sentimento, saudade e muita arte! A foto, belíssima, a condizer!
PARABÉNS.
Beijos.