sábado, 15 de fevereiro de 2014

Abandono



Navegou por mares longínquos, ora mansos como lagos, ora relevados como cordilheiras de altas serras, num sobe e desce de vagas profundas. As baleias e os golfinhos foram a sua companhia na descoberta dos cardumes da prata que encheria o seu ventre para se converter no alimento das famílias e dos homens que o governavam e dele dependiam com confiança.
Muitas campanhas de gente forte e corajosa viveram dele e para ele.
Em terra, ficavam os corações femininos ansiando pelo seu regresso, numa espera longa e, em que, durante esse tempo, saudosas pelo amor dos homens ausentes, uns profundos sulcos, sinónimo de cuidados e canseiras, iam marcando os seus rostos jovens.

Envelheciam sozinhas.  
Muitas luas se passaram, muitos ventos zuniram nos seus mastros, muitas vagas varreram o seu convés. Quantas vezes mergulhou na escuridão dos nevoeiros com o sol embrulhado em densas teias de humidade. Os seus comandantes, mestres na arte de navegar, sempre o souberam dirigir com rumos certos para bons portos, mas, agora, tal como eles, a sua vida chegou ao limite.

As tábuas do convés esburacaram carcomidas pelo bicho, pela idade que não perdoa e tudo consome, o seu cavername, - a sua coluna dorsal -, a sua estabilidade que lhe proporcionava a forte resistência para vencer a adversidade dos mares, está diminuída; os motores –o seu coração-  pararam para sempre, já não necessitam de óleo, o sangue que lhe dava vida; os porões deixaram de ter condições para guardar qualquer espécie piscatória, cheiram a mofo, criaram limo, são urnas vazias.
Agora, só lhe resta o esqueleto velho, enferrujado, apodrecendo a cada dia que passa, ali, no estaleiro onde permanece encalhado a servir de albergue a ratos e baratas, pouso de aves marinhas, abandonado às intempéries, açoitado por ventos e areias, incapaz de navegar.

Dentro de si guarda recordações que não partilhará; vagueiam fantasmas de sonhos e fantasias.

 foto e texto de Benó
 

 

3 comentários:

Beatriz Bragança disse...

Querida Beno
Uma bela «biografia» para um barco «morto»!
Quem muito andou, ja nao tem para andar.
Parabens pela sua extraordinaria forma de narrar.Vive-se o que escreve.
Obrigada.
Beijinhos
Beatriz

Graça Pires disse...

Um barco a contar a sua história de coragem, solidões, sonhos e memórias. Um bonito e sensível texto, Benó.
Beijos.

São disse...

O texto está muito bom.

E a mim a bela foto, parece-me uma triste metáfora do estado actual do nosso país...

Beijinhos de bom dia